Vipassana
Como ensinada por S. N. Goenka
Meditação
na tradição de Sayagyi U Ba Khin
Palestra Dia Um
Dificuldades iniciais––o propósito desta meditação––por que a respiração é escolhida como ponto de partida––a natureza da mente-a razão das dificuldades e como lidar com elas––perigos a serem evitados
O primeiro dia é cheio de grandes dificuldades e de desconfortos, parcialmente porque não estamos acostumados a nos sentar durante o dia todo e tentar meditar, mas em grande parte por causa do tipo de meditação que começou a praticar: consciência da respiração, nada além da respiração.
Teria sido mais fácil e mais rápido concentrar a mente, sem todos estes desconfortos se, juntamente com a consciência da respiração, tivéssemos começado a repetir uma palavra, um mantra, o mone de um deus ou se tivéssemos começado a imaginar a as feições ou a forma de uma deidade. Mas vocês são solicitados a observar apenas a respiração, tal qual é, sem a regular. Nenhuma palavra ou nenhuma forma imaginária pode ser adicionada.
Não são permitidos porque o objetivo final desta meditação não é a concentração da mente. A concentração é apenas um auxílio, um degrau que leva a um objetivo mais elevado: purificação da mente, erradicação das impurezas mentais, as negatividades interiores, para, assim, alcançar a libertação de todo sofrimento, alcançando a iluminação total.
Sempre que uma impureza se manifesta na mente, tal como raiva, ódio, paixão, medo, etc., nos tornamos infelizes, sofredores. Sempre que acontece algo indesejado, nos tornamos tensos e começamos a atar nós no nosso interior. Sempre que algo desejado não acontece, uma vez mais, geramos tensão interior. Esse processo é repetido pela vida afora, até que a estrutura mental e física se transforme em um fardo de nós górdios. E essa tensão não se limita à nossa pessoa, mas é distribuída a todos com quem entramos em contato. Certamente, essa não é a forma mais correta de viver.
Você tem de vir para este curso de meditação para aprender a arte de viver: como viver em paz e em harmonia dentro de si próprio e a gerar paz e harmonia para todos os outros; como viver feliz, diariamente, enquanto progride na direção da felicidade mais elevada de uma mente totalmente pura, com alegria pelo sucesso dos outros, com equanimidade.
Para aprender a arte de viver harmoniosamente, primeiro precisamos encontrar a causa da desarmonia. A causa está sempre dentro de nós mesmos e, por isso, você deve explorar a sua própria realidade. Esta técnica ajuda-o a realizar este objetivo, a examinar a sua estrutura mental e física, pela qual existe tanto apego, resultando somente em tensões, em sofrimento. Precisamos compreender nossa própria natureza mental e física no nível da experiência; só depois é possível experimentar seja o que for que exista além da mente e da matéria. Esta é, portanto, uma técnica de percepção da verdade, de percepção própria, investigando a realidade daquilo que chamamos de “eu-mesmo”. Também pode ser considerada uma técnica de experiência de Deus, porque, afinal, Deus nada mais é do que a verdade, o amor, a pureza.
A experiência direta da realidade é essencial. "Conheça a si próprio"-da realidade superficial, aparente, grosseira, até as realidades mais sutis, até a realidade mais sutil da mente e da matéria. Tendo experimentado tudo isso, poderemos ir mais adiante a fim de experienciar a realidade suprema que está além da mente e da matéria.
A respiração é o ponto correto por onde começar esta jornada. Usar um objeto imaginário de atenção -––uma palavra ou uma forma –– leva-nos somente em direção a maiores imaginações, maior ilusão; isso não ajudará a descobrir as verdades mais sutis sobre si próprio. Para penetrar a verdade mais sutil, é necessário começar pela verdade, por uma realidade aparente densa, como a respiração. Além disso, se uma palavra ou uma forma de alguma divindade for utilizada, a técnica torna-se sectária. A palavra ou a forma será identificada com uma cultura, uma religião ou outra e isso pode ser inaceitável para pessoas de diferentes culturas e religiões. O sofrimento é uma moléstia universal. O remédio para este mal não pode ser sectário; precisa ser também universal. A consciência da respiração preenche este requisito. A respiração é comum a todos: o ato de a observar será aceitável para todos. Cada passo no caminho deve estar totalmente livre de sectarismo.
A respiração é a ferramenta com a qual se pode explorar a verdade sobre nós mesmos. De fato, no plano experimental, você conhece muito pouco sobre o seu próprio corpo. Você só conhece a sua aparência externa, as partes e as funções que pode, conscientemente, controlar. Nada se conhece acerca dos órgãos internos que operam além do nosso controle, nada sobre as células de que o corpo inteiro é composto e que estão em mudança a cada momento. Inúmeras reações bioquímicas e eletromagnéticas ocorrem constantemene, por todo o corpo, mas você não tem conhecimento delas.
Neste caminho, tudo o que lhe for desconhecido, acerca de si próprio, deve se tornar conhecido por você mesmo. Para tanto, a respiração o ajudará. Ela atua como uma ponte entre o conhecido e o desconhecido, porque a respiração é uma função do corpo que tanto pode ser consciente, como inconsciente, pode ser intencional ou automática. Começamos com a respiração consciente, intencional e seguimos para a consciência da respiração normal, natural. A partir daí, se avança para verdades mais sutis sobre si próprio. Cada passo é um passo com a realidade; a cada dia que passa, irá penetrar mais fundo na descoberta de realidades sutis sobre si próprio, sobre o seu corpo e a sua mente.
Hoje foi-lhe pedido para observar apenas a função física da respiração, mas, ao mesmo tempo, cada um de vocês estava observando a mente, porque a natureza da respiração está fortemente conectada com o estado mental de cada indivíduo. Logo que qualquer impureza, qualquer contaminação se manifesta na mente, a respiração se altera –– começamos a respirar mais rápido, de forma menos regular. Quando as impurezas desaparecem, a respiração volta a ser suave, normal. Assim, a respiração pode nos ajudar a explorar a realidade, não somente do corpo, mas também da mente
Uma realidade da mente, que você começou a experimentar hoje, é o hábito de sempre vagar de um objeto para outro. Ela não quer permanecer com a respiração ou com qualquer outro objeto de atenção. Em vez disso, corre desenfreadamente.
E, quando a mente divaga, para onde é que ela vai? Pela sua prática, sabe que a mente divaga pelo passado e pelo futuro. Este é o seu padrão de hábito; a mente não deseja permanecer no momento presente. Na realidade, deve-se viver no presente. Seja o que for que tenha acontecido no passado, não é possível recuperar. Seja qual for o futuro, está além do nosso alcance, até se tornar presente. É importante lembrar o passado e pensar sobre o futuro, mas, só até o ponto em que seja de ajuda para lidar com o presente. Contudo, por causa deste hábito enraizado, a mente tenta constantemente escapar da realidade presente para um passado ou um futuro que é inatingível e, assim, esta mente selvagem permanece agitada, infeliz. A técnica que você está aprendendo aqui é chamada de “a arte de viver” e a vida só pode ser vivida, de fato, no presente. Por conseguinte, o primeiro passo é o de aprender a viver no momento presente, ao manter a mente na realidade presente: o ar que está agora entrando ou saindo das narinas. Esta é a realidade deste momento, mesmo sendo superficial. Quando a mente divagar você, sorridente, sem qualquer tensão, aceita o fato de que, por causa do seu velho padrão habitual, ela divagou. Assim que tomamos consciência da distração, naturalmente, automaticamente, a mente retorna outra vez à consciência da respiração.
Você reconheceu com facilidade a tendência da mente de se envolver em pensamentos, relacionados tanto com o passado quanto com o futuro. Agora, de que tipo são os seus pensamentos? Hoje você viu por si próprio que, às vezes, os pensamentos surgem sem qualquer sequência, sem pé nem cabeça. É frequente tal comportamento mental ser visto como sinal de loucura. Agora, contudo, todos vocês descobriram que são igualmente loucos, perdidos na ignorância, nas ilusões e nos delírios –– moha. Mesmo quando há uma sequência nos pensamentos, eles têm, como seu objeto, alguma coisa agradável ou desagradável. Se for agradável, começamos a reagir com uma satisfação que evolui para se transformar em avidez, apego ––ragga. Se for desagradável, começamos a reagir com uma insatisfação que evolui para se transformar em aversão, ódio ––dosa. A mene está sempre repleta de ignorância, avidez e aversão. Todas as outras impurezas têm origem nessas três contaminações básicas e cada uma delas gera infelicidade, sofrimento.
O objetivo desta técnica é o de purificar a mente, libertá-la do sofrimento, erradicando, aos poucos, as negatividades internas. Trata-se de uma operação profunda, realizada na mente inconsciente, com o propósito de descobrir e de remover complexos aí escondidos. Até mesmo o primeiro passo na técnica deverá purificar a mente e é o que ocorre: pelo fato de observar a respiração, você começou não só a concentrar a mente como, também, a purificá-la. Talvez, durante o dia, tenham ocorrido só alguns momentos em que a sua mente estivesse completamente concentrada na respiração, mas, cada um desses momentos tem o grande poder de mudar o padrão de hábito da mente. Nesse momento, você está atento à realidade presente, o ar que entra ou que sai das narinas, sem qualqeur ilusão. Você não está sentindo avidez por respirar mais, nem aversão pela respiração: você simplesmente observa, sem reagir. Nesses momentos, a mente está livre das três impurezas básicas, ou seja, está pura. Esse momento de pureza, no nível consciente, tem um forte impacto sobre as antigas impurezas acumuladas no inconsciente. O contato entre essas forças positivas e negativas produz uma explosão. Algumas das impurezas, escondidas no inconsciente, sobem ao nível consciente e manifestam-se como vários desconfortos no plano mental e físico.
Quando confrontados com essa situação, corremos o perigo de nos agitarmos e de multiplicar as dificuldades. Não obstante, seria bom compreender que aquilo que parece ser um problema é, na realidade, um sinal de sucesso na meditação, uma indicação de que, de fato, a técnica começou a funcionar. A operação, no nível do inconsciente, começou, e parte do pus lá escondido começou a subir à superfície da ferida. Apesar de o processo ser desagradável, essa é a única forma de se libertar da infecção, de remover as impurezas. Se continuarmos a trabalhar de forma correta, todas essas dificuldades aos poucos diminuirão. Amanhã será um pouco mais fácil, no dia seguinte mais ainda; pouco a pouco, se for diligente, todos os problemas serão ultrapassados.
Ninguém mais pode fazer este trabalho por você: você tem de trabalhar por si próprio. Você tem de explorar a realidade dentro de si próprio. Você tem de se libertar.
Alguns conselhos sobre como trabalhar
Durante as horas de meditação, sempre medite entre quatro paredes. Se tentar meditar do lado de fora, em contato direto com a luz e com o vento, não será capaz de penetrar as profundezas de sua mente. Durante os intervalos, você poderá sair para o lado externo.
Você deve permanecer dentro dos limites do local onde o curso está sendo realizado. Você está se submetendo a uma operação cirúrgica em sua mente. Permaneça na sala de cirurgia.
Tome a decisão de permanecer durante todo o período do curso, independentemente das dificuldades que possam surgir. Quando os problemas tiverem surgido, durante a operação, lembre-se desta forte determinação. Pode ser prejudicial partir no meio do curso.
Da mesma maneira, faça uma forte determinação a fim de observar todas as regras e a disciplina, dentre todas elas certamente é a lei do silêncio. Igualmente decida seguir os horários e, especialemente, dentro da sala de meditação, por ocasião das três sessões de meditação em grupo, com duração de uma hora, todos os dias.
Evitem o perigo de comer demais, de se permitirem a si próprios de sucumbir ao torpor e à conversa desnecessária.
Trabalhem exatamente como for solicitado. Sem condená-la, deixe de lado, durante o período do curso, qualquer coisa que tenham lido ou que tenham apredido alhures. Misturar técnicas é muito perigoso. Se algum ponto não tiver ficado claro para vocês, procurem o orientador para esclarecimento. Mas deem uma chance justa a esta técnica. Se assim o fizerem, obterão resultados maravilhosos.
Façam o melhor uso do seu tempo, da oportunidade, da técnica, para se libertarem a si próprios das amarras do desejo, da aversão, do delírio e para usufruir a verdadeira paz, a verdadeira harmonia, a verdadeira felicidade.
Verdadeira felicidade para todos vocês.
Que todos os seres sejam felizes!